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Mérito ou sorte?
Recentemente comecei a organizar meus backups e me deparei com várias fotos antigas que me fizeram retornar ao passado que nunca gostei de lembrar, evitava inclusive pensar nele.
Dos 13 aos 23 anos mais ou menos eu trabalhei em uma loja no bairro onde eu morava, era conhecida como Casa de Ração, meu tio estava desempregado e meu pai tinha um dinheirinho guardado e essa loja estava sendo passada pra frente, meu pai então falou com meu tio que entraria com o dinheiro para pegar o ponto desde que os seus dois filhos mais velhos trabalhassem na loja, na época eu com 13 e meu irmão com 14, meu tio concordou e então tudo começou.
Meu avô era analfabeto e a vida não era fácil, muitos filhos e pouca renda, meu pai então sempre trabalhou desde muito novo, saiu de casa cedo e fez de tudo um pouco, não concluiu o primeiro grau e para ele era muito difícil ver os filhos sem fazer nada quando não estávamos na escola, para ele o trabalho era uma escola muito melhor que a escola de verdade, como todo pai ele só queria o melhor para nós.
O trabalho era de segunda a segunda e sempre que eu não estava na escola eu estava na loja e a loja só fechava na sexta feira da paixão, nos feriados e domingos funcionava meio período. Fazíamos de tudo um pouco, limpeza, atendimento aos clientes, organizar as prateleiras, caixa, trocar dinheiro, alimentar os bichos e limpar as gaiolas, limpeza, carregar sacos de ração quando já tínhamos um certo porte físico pra isso.
Eu não gostava, foram 10 anos odiando quase todos os dias que eu estava lá, para um pré adolecente, nada parecia ser pior, não ter fim de semana, estar quase sempre sujo de carregar os sacos de farelo de trigo, ganhar quase nada e ver todos os seus amigos se divertindo era um pesadelo. Até hoje eu me pego sonhando que quando acordasse teria que ir trabalhar na loja, talvez eu devesse fazer terapia para superar esse trauma.
Olhando para a vida que tenho hoje, as coisas que eu e minha esposa conquistamos seria muito fácil colocar tudo isso na conta da tal meritocracia, eu ralei demais para chegar até aqui, logo eu mereço.
A verdade no entanto não é tão simples, muito do que deu certo na minha vida foi pela mais pura sorte, talvez o evento que deixa isso mais escancarado foi a minha primeira oportunidade de lecionar, ela só foi possível após um atraso na entrega do meu trabalho de conclusão de curso de pós graduação, enrolei quase um ano para entregar, tive que pagar disciplina isolada, arrumar orientador e quando entreguei o trabalho que foi sobre IPv6 e OSPFv3 utilizando software livre abriram uma vaga de professor substituto na área de redes na PUC/MG, a mesma instituição que estava fazendo a pós.
Como meu trabalho foi sobre redes e havia deixado uma boa impressão acabaram me oferecendo o trabalho, sei que eu tive mérito pois se não tivesse feito um bom trabalho nada disso teria acontecido, mas repare que não é 100% mérito e também não é 100% sorte. O acaso em nossas vidas tem mais efeito do que gostaríamos de admitir.
Não sei dizer com clareza como cheguei até aqui, eu entro no nosso apartamento, vejo a vista, os móveis, o quarto do meu filho, as fotos dos locais que já visitei e simplesmente não acredito, cerca de 20 atrás o que tenho hoje era simplesmente inimaginável.
Não confiem 100% na sorte e desconfiem de quem coloca tudo na conta da meritocracia, normalmente o discurso não condiz com a realidade e o indivíduo provavelmente está polindo uma história que se for ver mais de perto não é verdade. Continuem estudando e indo em frente, talvez um dia o vento comece a soprar a favor e não contra.
Para a meritocracia eu dou um ping ….! E você quantos pings dá pra esse texto?
Foto da loja - 1
Foto da loja - 2